CIÊNCIA DE FRONTEIRA, INOVAÇÃO E ÉTICA • 56ª REUNIÃO ANUAL DA SBPC
Este ano, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) decidiu registrar em cadernos temáticos os principais debates ocorridos durante sua 56a Reunião Anual,de 18 a 23 de julho de 2004, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiab(MT). Uma equipe de quatro repórteres foi destacada para reunir, nesta publicação, boa parte das conferências e mesas-redondas realizadas na UFMT. Aqui estão incluídas também as questões levantadas pelo público – professores, estudantes e pesquisadores – que
participou dos eventos.
É importante ressaltar que, numa seleção, seja ela qual for, sempre comete-se injustiças, seja por deixar de lado palestras ou simpósios igualmente importantes que por certos limites ou imprevistos não puderam ser assistidos, seja por incorrer em risco de interpretar erroneamente as falas dos expositores. Por isso, queremos deixar claro que esta é uma versão preliminar – não revista pelos conferencistas e debatedores – e não pretende ser nada além de munição para a reflexão de temas atuais que afetam direta ou indiretamente toda a sociedade.
Coordenação editoria
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
Pesquisa com células-tronco
enfrenta desafios e obstáculos
PROMISSORAS E CONTROVERSAS
Alvo de uma controvérsia que envolve desde conhecimento científico até definições religiosas de vida, passando por questões éticas e legais, a pesquisa em células-tronco e clonagem terapêutica se tornou conhecida do grande público recentemente. No Brasil, o destino dos estudos nessa área deve ser decidido no Congresso Nacional, onde tramita um projeto de lei sobre o assunto. Na conferência ‘Célulastronco’, a física Lygia da Veiga Pereira, coordenadora do Laboratório de Genética Molecular e Modelos Animais da Universidade de São Paulo (USP), falou extensamente sobre o tema, abordando as promessas e os problemas dessanova ferramenta.
Segundo Pereira, o primeiro passo para entender as células-tronco é compreender que todas as células de um indivíduo têm o seu genoma completo. Ou seja, cada uma delas
possui a ‘receita’ completa para ‘fazer’ uma dada pessoa dentro do seu núcleo. Apesar disso, uma célula de músculo é totalmente diferente de uma célula de pele, tanto na sua forma quanto na sua função. O que vai definir a identidade de cada uma será o conjunto de genes que estarão ligados ou desligados nelas. Neurônios, por exemplo, terão grupos ativos e inativos completamente distintos dos de um leucócito.
As células-tronco seriam aquelas com capacidade de auto-renovação, multiplicação ilimitada, ou prolongada, e capazes de produzir pelo menos um tipo de descendente altamente diferenciado. Elas são divididas em dois grandes grupos: as embrionárias e as adultas. “A denominação ‘adulta’, nesse caso, serve para definir aquelas que não são originárias de um embrião.
É perfeitamente possível ter células-tronco adultas derivadas de um recém-nascido”,
explicou a física. Segundo ela, já se trabalha com células embrionárias de camundongo
desde a década de 1980. Nesses animais, elas aparecem três dias e meio após a fecundação e dão origem a todos os tecidos do embrião. Como não são células diferenciadas, mas têm o potencial de se transformar em qualquer outra, elas são chamadas de pluripotentes.
O isolamento dessas células do botão embrionário e o seu cultivo levam ao estabelecimento de uma cultura de células-tronco embrionárias.
Pereira disse que o cultivo dessas células é muito delicado, pois sua tendência é
se diferenciar. Como o objetivo é multiplicá-las sem que elas sofram diferenciação, os
cientistas precisam adicionar ao meio de cultura várias substâncias que bloqueiem essa
habilidade. Além disso, as células-tronco embrionárias são cultivadas sobre fibroblastos embrionários, que também secretam fatores para mantê-las não
diferenciadas.
NO LABORATÓRIO
Em 1999, o laboratório da USP decidiu estabelecer culturas de células-tronco
embrionárias. Segundo a física, o objetivo principal era utilizar essa células para a geração
de camundongos geneticamente modificados. A partir de blastocistos desses animais, os pesquisadores isolaram o botão embrionário, cultivaram as células e submeteram as várias linhagens obtidas a um teste para verificar se elas eram, de fato pluripontentes. Outros testes realizados incluíram o de cariótipo, para determinar se
elas possuíam o número correto de cromossomos, o de atividade fosfatase alcalina,que indica se a célula não está diferenciada, e de formação de corpos embrióides.
Neste último, permite-se que as células se diferenciem e formem corpos embrióides.
“Isso não é um embrião. Não vai haver formação de um camundongo a partir de uma
placa de cultivo, mas nela já é possível encontrar vários tecidos diferentes”, esclareceu a pesquisadora. Com base nesses resultados, foram estabelecidas três linhagens de células-tronco embrionárias de camundongo, batizadas de USP1, USP2 e USP3.
A averiguação da pluripotência dessas células pode ser feita de muitas maneiras.
Uma delas é injetar as células embrionárias em camundongos imunossuprimidos. Se
elas forem realmente pluripotentes, formarão teratomas, nos quais consegue-se identificar tecidos das diferentes origens embrionárias: endoderma, exoderma e mesoderma. Isso é uma indicação de seu potencial de diferenciação.
Outra forma – utilizada no laboratório de Pereira – é reintroduzir as células embrionárias em embriões e observar quais tecidos elas desenvolverão no animal resultante.
Por exemplo, ao cultivar células derivadas de um camundongo de pelagem marrom
com embriões de um camundongo de pelagem branca, cria-se um blastocisto (estágio
de desenvolvimento embrionário) formado por uma mistura de células originárias de
ambos. Essa estrutura é transferida para um fêmea, que atua como uma barriga de aluguel, e, por meio do padrão de coloração, podem-se distinguir os diferentes níveis de contribuição daquelas células embrionárias para os tecidos desses animais.
Outra atividade conduzida no laboratório, de acordo com Pereira, é induzir a
diferenciação in vitro. Para isso, retiram-se tanto os fatores de bloqueio quanto a
camada de fibroblastos da cultura original de células embrionárias, e permite-se que
elas cresçam em suspensão, iniciando um processo de desenvolvimento. Nos corpos
embrióides formados, então, podem-se identificar tecidos epiteliais, musculares e hematopoiéticos (que geram células sangüíneas), entre outros.
TERAPIAS E TRANSPLANTES
“A utilização das células embrionárias como fonte de tecido para transplante
não significa deixar que elas se diferenciem em tecido sem controle, pois isso poderia
levar à formação de teratomas nos pacientes”, explicou Pereira. Segundo ela, a idéia é
estabelecer linhagens e dirigir, através do tratamento das células embrionárias com
diferentes fatores, sua diferenciação para tecidos específicos, de acordo com a doença
da pessoa. Por exemplo, o cultivo na presença de ácido retinóico as induziria a se diferenciar em neurônios. Uma vez diferenciadas in vitro, as células seriam então injetadas nos indivíduos.
A física ressaltou que os vários trabalhos realizados por grupos estrangeiros
justificam a grande animação em relação ao uso das células embrionárias como fonte
de tecido para transplante. Ela citou três trabalhos nessa área. O primeiro, de 1995,
relata o uso das interleucinas 3 e 6 para gerar células hematopoiéticas (sangüíneas).
Parta testar seu valor terapêutico, os pesquisadores as injetaram em camundongos irradiados, cuja medula óssea tinha sido destruída, simulando uma situação de leucemia
e de necessidade de transplante de medula. Eles observaram que as células diferenciadas foram capazes de dar origem a todas as linhagens do sistema nos animais irradiados.
O segundo trabalho, publicado na revista britânica Nature em 1999, trata do
uso de ácido retinóico para induzir a diferenciação em células neuronais. Estas foram
então injetadas em ratos que haviam sofrido um trauma da medula espinhal e perdido
os movimentos das patas posteriores. O objetivo dos cientistas era ver se essas células derivadas das embrionárias eram capazes de regenerar as conexões rompidas daquela medula. Entre duas a cinco semanas após a injeção, eles observaram que tinha havido diferenciação em diversas células neuronais. “O mais importante nesse experimento é que os animais tiveram uma recuperação parcial do movimento das patas posteriores”, destacou Pereira. Ela lembrou que esse tipo de experiência em modelos animais gera
uma grande expectativa quanto ao uso dessas células em seres humanos. Um exemplo
disso seria o ator norte-americano Christopher Lee, conhecido por interpretar o Super-
homem no cinema, que é um grande ativista eincentivador de pesquisas com células embrionárias,pois acredita que ainda vai se beneficiar de seu uso.
O último trabalho citado por Pereira, de 2001, publicado na revista norte-americana Science, descreve a diferenciação de células-tronco embrionárias em células
que secretam insulina, similares às existentes no pâncreas. Os pesquisadores demonstraram a capacidade de vascularização de um enxerto dessas células
em um animal e a produção de insulina. No entanto,
um ano e meio depois, outro artigo na mesma revista relatou que aquelas células diferenciadas não estavam produzindo insulina e sim captando-a do meio de cultura,
ao qual era adicionada para promover a diferenciação,
secretando-a. A física vê isso como um exemplo dos altos e baixos da área
de células-tronco. “Temos que progredir, sim, mas sempre com muita cautela”, alerta.
PROMESSA E POLÊMICA
O ano de 1998, segundo Pereira, é um marco na história dessa pesquisa, pois
estabeleceram-se as primeiras culturas de células-tronco embrionárias humanas. Assim
como no caso dos camundongos, essas células são derivadas do blastocisto que, em
seres humanos, corresponde a um embrião de cinco dias. No trabalho que descreve o
processo, foram utilizados embriões excedentes de clínicas de fertilização. Os pesqui sadores responsáveis demonstraram a pluripotência das células injetando as nãodiferenciadas em camundongos imunossuprimidos, como descrito antes, e conseguiram
observar a formação de teratomas.
Para a física, a grande promessa das células-tronco embrionárias humanas é
poder realizar com elas os mesmos protocolos de diferenciação, identificando exatamente quais são os fatores que induzirão sua diferenciação em tecidos específicos
para terapia. As células humanas já foram diferenciadas em células de medula óssea,
do sistema nervoso, do músculo cardíaco e do pâncreas. Há, portanto, uma grande
esperança de que elas possam ser usadas no tratamento, por exemplo, de leucemias,
diabetes ou insuficiência cardíaca.
Assim como em qualquer tipo de transplante, o principal problema é o risco de
rejeição – não necessariamente um embrião específico será compatível com o paciente.
Uma opção para resolver isso seria criar um banco de células embrionárias derivadas
de milhares de embriões diferentes e testar com qual delas a pessoa é compatível.
Nesse caso, há o risco de não se encontrar qualquer compatibilidade. Outra alternativa
seria gerar células-tronco embrionárias geneticamente idênticas ao indivíduo, a
chamada clonagem terapêutica. Nessa técnica, retira-se uma célula adulta qualquer –
de pele, por exemplo – do paciente e transfere-se seu núcleo para um óvulo enucleado
(sem núcleo), da mesma forma que foi feito com a ovelha Dolly. O embrião é cultivado
no laboratório e, quando chega ao estágio de blastocisto, em vez de ser transferido
para o útero de uma mulher – o que configuraria a clonagem reprodutiva –, servirá
como fonte de células-tronco embrionárias geneticamente idênticas ao paciente.
Segundo Pereira, a viabilidade do ciclo de clonagem terapêutica já foi demonstrada
em camundongos e bovinos. Este ano, em trabalho publicado na revista Science,
um grupo da Coréia do Sul relatou ter conseguido estabelecer uma linhagem de célulastronco embrionárias a partir de embriões clonados, gerados por transferência nuclear.
O resultado dá a entender que será possível utilizar a clonagem terapêutica também
em humanos para gerar tecidos imunologicamente compatíveis com os pacientes.
Apesar dos potenciais benefícios dessa técnica, ela é uma fonte de polêmica no
mundo inteiro. Alguns grupos alegam que ela deveria ser proibida, dado o risco que
envolve de se criar um comércio de embriões. Outros dizem que a proibição deve existir
porque não há qualquer forma de se assegurar que o embrião não será implantado
no útero de uma mulher para fazer um clone humano. A pesquisadora da USP acha
que esses argumentos não justificam a proibição do desenvolvimento desse tipo de
pesquisa. Para ela, a solução não é a proibição, mas, sim, a criação de mecanismos de
vigilância, legislação e punição. “Qualquer nova tecnologia pode ser utilizada de forma errada. Uma faca pode cortar um bife, mas também pode matar uma pessoa, nem
por isso vamos bani-la”, afirmou.
A pesquisadora da USP acredita que o motivo real por trás dos argumentos contra o desenvolvimento desse tipo de tecnologia é a questão do embrião. É necessário destruí-lo para retirar as células-tronco embrionárias e, para algumas culturas e religiões, ele é considerado um ser vivo. No entanto, Pereira lembrou que o blastocisto é um embrião de cinco dias de desenvolvimento, e não um feto formado com o coração batendo – imagem que costuma aparecer na mente das pessoas quando o assunto é mencionado. Ela salientou que a definição de vida é muito subjetiva. Por exemplo, na religião cristã, a vida se inicia no momento da fecundação, enquanto no judaísmo ela começa a partir do momento em que o embrião se implantou no útero materno, o que só acontece alguns dias depois da formação do blastocisto. Logo, em Israel, não há qualquer dilema ético sobre a utilização desses embriões, e o país está muito avançado nessa área.
LEGISLAÇÕES
Um projeto de Lei de Biossegurança, com a proibição do uso de embriões humanos como material biológico, tramitava no Congresso Nacional à época da palestra da física na 56a Reunião Anual da SBPC.
Pereira ressaltou na oportunidade que esse projeto visava legislar sobre organismos geneticamente modificados. “O embrião não é um organismo genéticamente modificado, logo, se usarmos uma lógica cartesiana, seu destino não deveria estar sendo tratado por essa lei”, comentou. Ela apontou também o contra-senso do projeto, que permite a clonagem terapêutica para a obtenção de células-tronco, embora esse processo envolva, necessariamente, a destruição de um embrião. Segundo a física, é importante destacar que, se a lei for aprovada, vai criar uma proibição extremamente radical para esse tipo de pesquisa no Brasil, pior até do que aquela vigente nos Estados Unidos. Nesse país, é proibido usar verba federal nesse tipo de pesquisas, mas não recursos privados. A proposta aqui no Brasil resultará no bloqueio completo do desenvolvimento dessa área de estudo.
A pesquisadora reconheceu a necessidade de termos uma legislação que impeça a clonagem reprodutiva humana no Brasil, evitando assim que o país se torne um paraíso clonal – um lugar no qual pessoas de todo o mundo conduzam atividades biológicas ilegais. Contudo, ela acredita que a aprovação do projeto de lei em sua forma atual [antes da aprovação do substitutivo do senador Osmar Dias (PDT-PR) em 10 de agosto pelo Senado] seria gravíssima, pois perderíamos uma vantagem competitiva na área: em vez de atrair pesquisadores de países que não permitem a pesquisa, poderíamos causar a saída dos nossos. “Se entrar em vigor, a legislação causará um atraso científico e tecnológico em médio e longo prazo no país, invalidando anos de investimento tanto em recursos humanos quanto em equipamento. No futuro, talvez tenhamos que mandar os pacientes se tratar em outro país ou então importar essa tecnologia”, advertiu a física.
Pesquisadores brasileiros elaboraram uma modificação para o texto original do projeto de lei para permitir o uso de embriões de baixa qualidade. Pereira explicou que, quando um casal faz um tratamento de fertilização, o médico sabe diferenciar
aqueles embriões que têm alguma probabilidade de dar origem a um bebê. Os outros,de morfologia inferior, cuja chance de se desenvolverem não é significativa, são descartados.
São estes que os cientistas sugerem usar. De acordo com a nova proposta, seria proibido criar um embrião somente para fins de obter material biológico, mas aqueles
gerados em clínicas de fecundação e que seriam descartados por sua baixa qualidade, ou que estejam congelados há mais de três anos – o que reduz ainda mais a sua viabilidade.Pereira reconhece que um embrião humano não é material trivial, como pele ou sangue, mas ela não crê que se deva conceder a ele os mesmos direitos de um indivíduo. “Estudos mostram que a chance de um embrião criado por transferência nuclear se desenvolver é de menos de 1%, muito inferior à de um embrião natural”, ponderou.
Outra questão legal levantada pela pesquisadora refere-se a uma resolução do Conselho Federal de Medicina, de novembro de 1992, que dispõe sobre as normas éticas para uso das técnicas de reprodução assistida. Pelo documento, é proibida a fecundação de óvulos humanos com qualquer outra finalidade que não a procriação humana. Em seguida, afirma que o número total de pré-embriões produzidos em laboratório deve ser comunicado e que o excedente, ou seja, aqueles que não são transferidos para a mulher, deve ser criopreservados (mantidos congelados), não podendo ser descartados nem destruídos. Essa norma também impede o desenvolvimento das pesquisas. Mas, para Pereira, nessa época talvez não estivesse tão claro o potencial do uso em pesquisa dos embriões excedentes, e agora seria uma boa oportunidade para se discutir o que se vai ou não fazer com esse material aqui no Brasil.
“Enquanto não temos autonomia para produzir as nossas próprias linhagens de células embrionárias humanas, continuamos fazendo pesquisa com aquelas vindas dos Estados Unidos”, explicou a física. Em março de 2004, o grupo do biólogo norteamericanoDouglas Melton, da Universidade de Harvard, publicou na revista norteamericana
New England Journal of Medicine o estabelecimento de 16 novas linhagens de células-tronco embrionárias humanas, as quais eles disponibilizaram para qualquer pesquisador do mundo. Segundo Pereira, Melton e seus colegas acreditam tanto no desenvolvimento
dessa área de pesquisa que resolveram capacitar cientistas do mundo inteiro para trabalhar com elas, incluindo a física da USP, cujo laboratório recebeu algumas das linhagens.
A pesquisadora considera importante também a questão da proliferação in vitro (em laboratório) dessas células. Para utilizá-las como fonte de tecidos para transplante e obter o efeito terapêutico desejado, é preciso produzir uma quantidade suficiente. Isso requer o conhecimento de quantas gerações de células é possível gerar sem que elas percam sua pluripotência. “Temos que investir em protocolos de proliferação in vitro”, disse.
PROPOSTAS ALTERNATIVAS
A seriedade das discussões éticas levou à criação de propostas alternativas para
a geração de células embrionárias. Por exemplo, um grupo propôs utilizar óvulos bovinos,em vez de humanos, para fazer a transferência nuclear. A partir desse embrião,
se estabeleceriam células embrionárias ‘humanas’ – apesar de o núcleo ser humano,todo o citoplasma seria bovino, incluindo as mitocôndrias, que possuem DNA desses animais. De acordo com Pereira, esse tipo de proposta ilustra o desespero dos pesquisadores para poder avançar nesse tipo de pesquisa.
Ela apresentou uma opção que vem sendo estudada pelo seu laboratório: célulastronco
adultas derivadas da polpa do dente de leite. O grupo da pesquisadora estabeleceu uma cultura das células que estão na raiz dentária e induziu a sua diferenciação primeiro em osteoblastos e, depois, modificando o meio de cultura, em células musculares.Além disso, ao tratá-las em condições específicas, os cientistas conseguiram transformá-las também em células nervosas. Apesar de ainda ser necessário determinar se a técnica é funcional in vivo, Pereira acredita que essa é uma área promissora para se investir.
As células-tronco adultas são apontadas como uma possível alternativa. As mais
conhecidas entre elas são aquelas presentes na medula óssea, que dão origem a todas as células do sistema hematopoiético. Até cerca de 10 anos atrás, acreditava-se que as células-tronco da medula óssea só eram capazes de dar origem às células mesenquimais, mas vários estudos demonstraram um potencial de diferenciação muito mais amplo. Um trabalho publicado na Nature, em 1999, mostrou que células da medula óssea de camundongos sadios, quando injetadas intravenosamente em camundongos com distrofia muscular, foram integradas ao músculo e produziram a proteína cuja ausência provocava a doença.
Em um segundo experimento, células da medula óssea foram utilizadas para o tratamento de um modelo animal de infarto do miocárdio. Esse problema foi induzido em camundongo em cujo músculo cardíaco foram injetados, posteriormente, células da medula óssea de outro animal. A análise dos resultados mostrou que as células hematopoiéticas conseguiram se incorporar no músculo cardíaco e produzir proteínas específicas. De acordo com Pereira, esses experimentos foram tão promissores que justificaram o início desse tipo de experiência em seres humanos. Em artigo publicado na revista norte-americana Circulation, em 2003, e realizado em parte pelo grupo de pesquisa coordenado pelo biólogo Radovan Borojevic, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, indivíduos com insuficiência cardíaca receberam a injeção de células da sua própria medula óssea, eliminando o problema da rejeição. Os resultados foram promissores.
Outro trabalho importante, publicado em 2002 na New England Journal of Medicine,
analisou homens que receberam transplante de coração de mulheres. A análise
posterior de biópsias do músculo cardíaco desses indivíduos revelou de 7% a 12% de
células XY (masculinas). Isso pode indicar que existem células-tronco circulantes naturalmente no nosso corpo e que elas promovem alguma regeneração. Em um estudo similar, analisaram-se mulheres com leucemia que receberam transplante de medula
óssea de homens. A biópsia de seus cérebros revelou células do sistema nervoso com
um cromossomo Y, levando a crer que as células da medula óssea têm a capacidade limitada de se diferenciar em neurônios. “Precisamos agora conhecer esse sistema e saber como controlá-lo, para potencializar essa regeneração e diferenciação”, explicou apesquisadora da USP.
No entanto, ela ressaltou que existem problemas. Ainda não se sabe exatamente
o que acontece com essas células quando são injetadas, seja no modelo animal, seja
no paciente. Todo mês aparece um trabalho novo, em revistas de altíssimo impacto,
afirmando algo, para, logo em seguida, ser desmentido por outro estudo. Como exemplo,
Pereira cita dois artigos de 2002 que mostraram que as células da medula óssea não alteram a sua morfologia porque estão se diferenciando em músculo cardíaco, mas, sim, porque estão se fundindo às células do mesmo. Entretanto, outro estudo recente, publicado na revista Nature, contradiz essa informação, afirmando que não há fusão, e sim diferenciação.
A física levantou também a questão de que nesses experimentos está se injetando
uma população muito heterogênea de células da medula óssea e só algumas delas
são células-tronco. Para ela, é preciso descobrir dentro da ‘caixa-preta’ da medula
óssea quais são aquelas que de fato têm essa plasticidade tão ampla. Pereira citou um
trabalho divulgado na Nature, em 2002, no qual os pesquisadores conseguiram identificar, a partir da medula óssea, o que eles chamaram de células progenitoras pluripotentes adultas. Eles isolaram uma população específica, a injetaram dentro de um embrião de camundongo e observaram quais tecidos derivaram dessas células. Esse
grupo demonstrou que elas foram capazes de dar origem aos mais diversos tecidos nesse animal. Entretanto, alguns meses depois, outro artigo, publicado na Science, afirmou
existir pouca evidência da plasticidade dessas células hematopoiéticas. Os autores
fizeram experimentos semelhantes, mas não conseguiram repetir os resultados do outro grupo, que conseguiu isolar as células pluripotentes a partir da medula óssea.
De acordo com Pereira, essa é mais uma prova de que precisamos de mais pesquisa na
área de células-tronco.
Também é necessário, segundo ela, identificar novas fontes de células-tronco adultas, como o sangue do cordão umbilical e da placenta de recém-nascidos.
A abundância dessas células nesses locais justificou a criação de bancos de sangue de
cordão umbilical nos Estados Unidos e na Europa. Hoje, uma pessoa que precisa de
transplante de medula óssea pode recorrer também a esses bancos, além dos de medula
óssea. Aqui no Brasil, há uma grande vontade de que o Ministério da Saúde implemente
a criação de redes de banco de sangue de cordão umbilical.
Se as células-tronco adultas tiverem o mesmo potencial das embrionárias, elas podem um dia substituí-las. Isso eliminaria o dilema ético, mesmo porque já se faz esse tipo de transplante há anos – o de medula óssea. Outra vantagem seria poder, em várias ocasiões, usar células do próprio paciente, como nos problemas de insuficiência
cardíaca, desde que a doença não tenha uma origem genética. Entretanto, no momento, não se pode dizer que elas tenham o mesmo potencial das embrionárias. Por isso, é preciso continuar estudando ambas.
A importância da divulgação
A física mencionou também o papel do cientista em esclarecer os deputados e senadores, bem como o resto da população, que não têm obrigação de saber o que é clonagem terapêutica, célula embrionária e a diferença entre esta e a célula adulta. Ela contou
que já foram organizados dois ou três seminários de esclarecimento no Senado. Embora não tenha havido grande participação dos políticos, as apresentações foram gravadas pela TV Senado. As fortes manifestações por parte das instituições científicas, como
a Academia Brasileira de Ciência, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foram consideradas importantes.
Na conclusão de sua palestra, Pereira destacou a natureza controversa desse tópico, comparando sua evolução a uma ‘montanha russa emocional’, na qual um dia as células-tronco são uma panacéia e, no seguinte, não servem para nada. “O importante é acompanhar de perto as pesquisas, bem como participar delas, porque as promessas de uso médico só poderão se concretizar em longo prazo”, frisou.
http://www.sbpcnet.org.br/site/arquivos/arquivo_172.pdf
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segunda-feira, 30 de novembro de 2009
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